Era uma vez…
Há quinze anos atrás, tinha eu apenas 36 anos e vivia em Alhos Vedros desde 1973, regressado da guerra colonial (precisamente do Planalto dos Macondes em Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia banhada pelo rio Rovuma) e que, naquela vila que ainda respirava o odor salgado do que restava das últimas salinas, do pó da cortiça e dos panos e tecidos sintéticos recortados nas fábricas de confecções, vivi os vários aniversários onde partilhei os avanços e os recuos desta nossa história contemporânea e o agonizar daquelas indústrias, que foram marcando e moldaram a minha personalidade até ao início do século XXI.
Estes anos, que foram repletos (alguns) de alguma angústia pelos companheiros tombados na guerra e que ainda não está totalmente sarada e outros inundados de felicidade, como o do nascimento da Mónica Alexandra; pelo quebrar das amarras no madrugar do 25 de Abril de 1974; pelo primeiro 1º de Maio em liberdade onde vi transbordar multidões e onde pude exteriorizar a minha revolta perante tanta injustiça, assim como outras datas em que por vezes fui tentando adiar pequenas inquietações que foram colmatadas com a vivência diária.
Por circunstâncias que me foram alheias, vim morar para Alhos Vedros não esquecendo os amigos que deixei em Santarém, visitando-os esporadicamente (era lá que vivia antes de ir para a guerra colonial), não estranhando a mudança, porque o ambiente que encontrei era idêntico em termos de camaradagem e até na defesa dos valores defendidos pelos meus amigos Escalabitanos, e estas novas amizades ou apenas conhecimentos que tive o privilégio de partilhar resultaram também de trajectos, utopias e ideais prenhes de solidariedades nem sempre concretizadas, mas que algumas delas se foram cimentando até aos dias de hoje noutras vertentes, onde foi possível construir novas cumplicidades apesar das diferenças de opinião, ao ponto de sentir que alguns dos meus 51 anos vividos terem sido forjados com a cumplicidade destes novos companheiros e das “novas estradas” que caminhámos ao longo destes 15 anos, cujo trajecto começou a ser traçado pelo que se chamou inicialmente Grupo de Acção Cultural, que com eles partilhei desde o início com algumas interrupções de percurso.
Nesta estrada com percursos deveras atribulados devido a incompreensões dos poderes instituídos, tem este grupo, que mais tarde se denominou Cooperativa de Animação Cultural de Alhos Vedros (CACAV) deambulado de sítio em sítio, de esperanças em desesperanças entre utopias e inquietações sempre adiadas e de revoltas contidas por tanta incompreensão intencional daqueles poderes, produzindo cultura com as ferramentas rudimentares de que dispunha já que as outras lhes têm sido negadas a troco de alguns subsídios como se o poder estivesse a lidar com pequenos saltimbancos ou simples fazedores de cultura ambulante, quais “bobos da corte que fazem rir a plebe mas que irritam a nobreza instalada” cuja corte faz constar através de um dos seus arautos da área cultural, que é ela e somente a ela que compete “definir a política cultural do reino” quando é confrontado com alguma indignação pela desigualdade no tratamento e na atribuição dos “despojos do tesouro do reino”, ostracizando os que não lhe “beijam a mão” e se recusam a participar no “festim quando as trompetas tocam a reunir”.
Após 15 anos e de uma intensa prática de um certo “nomadismo cultural”, não seria demais lembrar que estes “pequenos saltimbancos incompreendidos” têm obra feita digna de reconhecimento, lembrando algumas das actividades mais marcantes que de imediato me vêm à memória.
– Lembro-me da primeira Artes Vedros 90 realizada em 1990, sem apoios de qualquer espécie num “casebre” que adaptámos como cenário e que cumpriu os nossos objectivos, sendo uma das mais concorridas por ter sido uma pedrada no charco no cinzentismo cultural do poder instituído nessa altura.
– Estou-me a lembrar da primeira vez que se comemorou o 475º aniversário do Foral de Alhos Vedros em 1987, cuja iniciativa da autoria da CACAV que, por falta de meios económicos e de outros apoios lhe veio a ser “arrancada pelos algozes da corte” até aos dias de hoje, (apesar de o termos ainda comemorado em conjunto), onde para o “resgate” desta nossa iniciativa funcionou o poder financeiro do “aparelho do condado”, que aos poucos também vai transferindo alguma da importância histórica de Alhos Vedros para outras paragens onde funciona de forma encoberta a “secular disputa territorial”, já materializada em tempos remotos no arranque do poço mourisco e da sua instalação nos paços do concelho do condado, motivando a revolta do povo de Alhos Vedros e a “reconquista” daquele monumento.
– Recordo com satisfação o grande concerto do José Mário Branco no Cais do Descarregador intitulado “Em Maio vamos cantar Zeca Afonso”, onde os apoios oficiais chegaram tardios e só depois de terem constactado o seu êxito.
– É com bastante orgulho que me lembro de imediato, sem qualquer ordem cronológica, do prémio promovido pela Associação Dinamis que a CACAV recebeu a nível do distrito de Setúbal, que a galardoava como a organização que em 1987 melhor difundia a actividade cultural no distrito, estranhando no entanto que este reconhecimento viesse de tão longe, enquanto que aqui tão perto as entidades culturais do burgo se entretiam a ignorar o nosso trabalho que era admirado por “estranhos”.
– Entre outras coisas também de grande importância, estou a lembrar-me da vinda a Alhos Vedros dos maestros Fernando Lopes Graça e o seu Coro da Academia de Amadores de Música e de Vitorino D’ Almeida, que dedilhou alguns acordes maravilhosos de piano na igreja matriz de Alhos Vedros e que foi beber um moscatel à então Rádio Opção, que também “parimos” na grande onda do movimento de legalização das rádios locais.
– Ainda sinto a noite memorável na Escola Secundária de Alhos Vedros dedicada ao povo de Timor-Leste, onde a CACAV e o povo desta secular vila lhes prestou homenagem e solidariedade apoiando a sua justa luta pela independência, enquanto outros a silenciavam só se pronunciando após o massacre de Santa Cruz porque se tornou mediático.
– Recordo a conferência de Agostinho da Silva pelo nosso 5º aniversário que fascinou todos os presentes no Centro de Convívio dos Reformados, onde ouvi pela primeira vez que “…o capitalismo também se manifesta nas escolas e se materializa, quando um aluno rico e mais bem preparado impede que o seu parceiro de carteira, de fracos recursos, menos preparado para o exame e oriundo dos meios rurais copie, porque aquele já está a pensar no seu futuro como gestor do sistema…”
Poderia recordar outras tantas actividades pela defesa e preservação do património histórico e natural, assim como outras mais recentes como as sempre aliciantes “Noites de lua cheia”, ou outras integradas no âmbito da “Oficina d’Artes” mas que deixaria para quem sobre elas tem mais legitimidade para as comentar.
Passados que são estes 15 anos em que a CACAV se “fez à estrada”, questiono-me e penso se com toda esta intensa actividade e outras tantas que o espaço não me deixa descrever, se não seria mais que legítimo e sem termos que dever favores a quem quer que seja, que esta organização cultural fosse dotada de uma casa para a sua sede social, e aí todos os seus colaboradores poderem desenvolver a sua actividade na promoção dos seus eventos, que se multiplicariam, tendo em conta a “obra já feita sem aquele privilégio”.
Uma casa que não seria só nossa mas de toda a população de Alhos Vedros, abandonando de vez as várias “tendas por onde nos fizeram e ainda nos fazem vegetar” pensando que nos fazem desistir; sem que estejamos sujeitos a cortes de luz sem aviso prévio e sem respeito pela nossa actividade e pelas pessoas que ali acorrem e a quem lhes são ministrados alguns conhecimentos em várias vertentes culturais; sem que estejamos sujeitos a que nos despejem dos pequenos cubículos onde nos acotovelamos e onde se amontoam os nossos parcos “tarecos”, sem que nos dêm qualquer satisfação como se fossemos uma espécie de “sem abrigo da cultura”.
Por vezes questiono-me a mim próprio se não seria “mais vantajoso” que a CACAV tivesse enveredado por outra “actividade cultural”, onde se evidenciasse a rotina do culto do “agora bebo eu e pagas tu e vice versa até que a rodada calhe a todos” ou pelo “tilintar das moedas que mudam de dono numa velocidade vertiginosa que promovem a angústia de quem perde ao jogo”, sem que se produza qualquer outra actividade que se possa chamar de cultural ou de relevo, para que hoje pudéssemos dizer que tínhamos uma sede social mas “…onde ninguém reivindicava nada nem o poder se sentia incomodado, pois ali as prioridades seriam outras…” deixando que outras CACAV’S se encarregassem de “entreter a plebe sem servir os interesses da corte” a troco de uma mão cheia de nada.
Mas não! … o caminho que trilhámos foi genuíno e resultou da cumplicidade empenhamento e da disponibilidade de cada um, onde retirámos (cada qual à sua maneira) uma parte de nós sem pedirmos nada em troca, denunciando o que tínhamos para denunciar e apoiando o que havia para apoiar, com o reconhecimento de que foi o caminho mais coerente e acertado, mantendo a nossa integridade intacta, assim como os nossos valores e pensamento independentes.
Neste 15º aniversário o reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pela CACAV já ninguém o pode apagar com uma simples borracha, para que conste (“se os escribas da corte não se esquecerem de o incluir nos seus pergaminhos”) na história de alguma cultura desinteressada e sem elitismo que se produziu em Alhos Vedros.
Assim continuaremos a manter a nossa coerência até que aquele reconhecimento que já é efectivo ultrapasse o mero gesto “mercantilista” do subsídio, e dê lugar a um outro sonho a que legitimamente a ele temos direito por mérito próprio, para que um dia a população de Alhos Vedros interessada por estas “coisas da cultura” (onde já incluo a Mafalda Sofia que já tem oito anos) ao olhar para a nossa sede, possa dizer com orgulho e satisfação; Finalmente! … Eles mereciam, há muito… E continuarem a contar outras tantas histórias associadas a realizações promovidas pela CACAV (de que me orgulho de ter queimado algumas pestanas a desenhar o seu símbolo), começando sempre pelo inquestionável e eterno, “Era uma vez…”
Carlos Vardasca
25 de Abril de 2001